sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Novo personagem em cena

1. Estou lendo no sofá da varanda, quando percebo passar ao lado, no gramado, um vulto amarelo. De volta, Amarelinha, a cadela responsável pela chacina do frango (detalhes, no blog da Mulher)? Nananina. Vou ver, é um bezerro. Eita. Passeando tranquilex, só faltou subir pr’um chá com bolachas.

2. Entre um parágrafo e outro de minha tradução, espio pela janela, que dá para o terreno do vizinho. Avisto a genitora do filhote, traçando seu café da manhã. Súbito, aparece ele. E chega faminto, o bezerrão. Suga de uma teta, de outra, faz um rodízio. Começa uma segunda rodada. Percebo que o úbere está meio murcho. O filhote também notou isso: começa a dar chacoalhões nele, com a cabeça, feito boxeador golpeando a bola de treinos. Sacode mais. E mais. Eu ali, só vendo a hora que Madame La Vache ia lhe dar uma patada de chega-pra-lá. Nada: tem a sorte de ter uma mãe compassiva.

3. Passeio pelo terreno. O bezerro, de novo, ao longe. Vejo-o fuçando um montinho de terra. Focinho quase enterrado. Dali a pouco, começa a saltitar. E berrar. Então, dobra as patas dianteiras, e passa a esfregar o pescoço no chão, numa posição um tanto quanto esdrúxula. Que diabo está fazendo? Rola na terra. Mais berros. Saltita de novo e repete a operação. Resolvido, o mistério: foi brincar no formigueiro.

De tédio não morro, nestas bandas. De jeito maneira!

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Linguagem publicitária (2)

Na revista Língua Portuguesa desse mês (sinc, sinc), um artigo interessante, intitulado “Os limites da retórica de mercado”. Nele, é mencionada uma campanha publicitária da Parmalat, de 1998, visando à promoção de sua marca de café solúvel. O slogan:

“Um café à altura do leite”.

A seguir, a matéria reproduz a declaração de um acadêmico:

– Dizer que o café está à altura do leite é partir da premissa de discriminação ética, de apresentação alegórica que reforça a crença na superioridade do leite, branco, sobre o café, que se toma por metáfora do negro.

Li, reli e treli o slogan, à procura da discriminação ética e da “involuntária invocação racista” nele contida, segundo o texto. Só me resta, agora, triplicar o cuidado com a escolha de palavras, para evitar expressões e termos como “a situação está preta”, “alvo (como adjetivo; como substantivo, vá lá)”, “negrume da noite” etc. E até mesmo para comprar feijão preto na feira (apontar com o dedo é certamente mais seguro).

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Cantoras, jornais e o estilo de cada um

Quanto mais leio a Folha, mais ela me lembra Marisa Monte (à exceção de seu trabalho com os Tribalistas). Quanto mais leio o Estadão, mais ele me remete a Ceumar (sobretudo nos álbuns Dindinha e Sempre Viva!).

Repare só.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Linguagem publicitária (1)

Trecho de um artigo de Peter Newmark, na revista inglesa The Linguist (tradução minha):

“O chocolate surgiu pela primeira vez como um artigo manufaturado na Suíça, no século XIX. Tornou-se conhecido por seus dois principais sabores: chocolate ao leite e chocolate amargo. A crise apareceu quando os experts da publicidade repentinamente se deram conta – ou acharam que se deram conta? – de que a designação “amargo” estava provocando um efeito gravemente pejorativo. Uma mudança linguística simples tinha de ser feita. Amer [francês] virou noir – o que está longe do ideal, mas “obscuro” teria sido pior. (...) Bitter(amargo) virou dark – que é ambíguo, mas pelo menos é misterioso”.

É mesmo de amargar, a notícia. Pensando bem, a divulgação dessa informação envolve riscos sérios. Imagine o bafafá, caso impliquem com nosso chocolate amargo. Contratarão um desses especialistas, que provavelmente colará sua tradução à do inglês, “dark”. Daí para um imbróglio, será um pulinho.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Essa é pra tocar no rádio (2)

Dante Ozzetti – Ultrapássaro, Gravadora Eldorado, 2000.

A rigor, Ultrapássaro (vencedor do 3º Prêmio Visa de MPB) é um disco de Dante e de Luiz Tatit, parceiro em sete das onze das canções do álbum. As letras e as melodias são um primor, com destaque para Dentro e fora, um choro em que um longo solo instrumental é intercalado entre a primeira e a segunda vez que Ná (irmã de Dante) e Virginia Rosa cantam a letra. Nele, uma progressão harmônica rara (em tempos de pasteurização generalizada da música popular, isso não é pouco) que leva o ouvinte a um longo e saboroso passeio musical.

Mas é um engano achar que Dante compõe “apenas” as melodias para letristas de mão cheia como Tatit. Prova disso são Assim e Vão. Achar adjetivos para elas pouco acrescenta a este esboço de resenha; é preciso ouvi-las.

Há mais de um ponto em comum entre Dante e Márcio Faraco (de quem falei recentemente, aqui). Ambos têm voz “pequena”, por exemplo. Dante, porém, compensa este ponto fraco chamando o Grupo Vocal Vésper, que engrossa o coro em algumas das faixas do álbum.

Fechando o disco, Vou voltar, de Dante e Itamar Assumpção. Que tem absolutamente tudo a ver com a guinada que dei há nove meses.

E mais não digo, pra não começar a resvalar na pieguice.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Mundo animal

Ainda pintávamos a casa, pré-mudança, quando o rebanho do vizinho anunciava a trilha sonora que teríamos. Se a carneirada produzisse aquele som todos os dias, benzadeus. Pouco a pouco, a fauna foi se revelando: na segunda semana, sobre o fogão, uma aranha do tamanho de uma mão média (assim relatou a Mulher, que às vezes é meio, digamos, hiperbólica); pernilongos king-size durante o verão; sapos à larga; pererecas que já apareceram até saltando do ralo do banheiro, pluct!; uma águia com uma cobra ao bico, cena digna de National Geographic; os tucanos com seu canto que silencia a passarada; as duas pequenas cobras – uma delas trazida, aliás, por Valentina (era a própria versão felina do Salvador Dalí). Sábado passado, um toque de Oxford no jardim: um esquilo veio dar um rápido alô.

Animado, o mundo animal nestas bandas.

Em tempo: desativada, a caixa de comentários. No caso de uma necessidade mais urgente (why there should be one is more than I can imagine, como diria o mestre P. G. Wodehouse) de contatar o escriba, o endereço está aí em cima.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

365 livros em um ano

Esta é a meta de leitura de Nina Sankovitch (detalhes, aqui). Começou sua viagem literária em outubro do ano passado; está prestes, portanto, a terminá-la. Mas ela não se limita à leitura: escreve também resenhas sobre os livros lidos. Curiosidade: no site, descobre-se que ela é mãe de... quatro filhos.

Corta. Pacata cidade americana, em 2032. No divã, o filho mais novo de Nina.

– Aquele ano foi particularmente difícil. Cortei um doze...

O porquê de sua viagem entre livros? Entre outros motivos, para “atenuar a dor que tenho sentido desde que minha irmã [que era apaixonada pela leitura] morreu, há quatro anos”.

De duas uma: Nina é um exemplo de vida ou então de patologia grave. Seja como for, lembra a história do sujeito que fazia uma daquelas viagens nas quais se visita 25 países europeus em 15 dias. Ao longo do percurso, escreveu em seu diário de bordo: “Today is Thursday. It must be Istambul”.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Tradução e verossimilhança

Depois de ler – e curtir bastante – A história de Despereaux, de Kate DiCamillo (Martins Fontes), fui atrás de outro livro dela: O tigre. Neste, são dois os protagonistas, cuja idade não é revelada. Parecem ter entre 9 e 12 anos, algo assim. No meio da leitura, algo nos diálogos começa a me incomodar. Começo a anotar essas falas.

a) – Uma profetisa – disse Sistina. – Elas estão pintadas lá no teto da Capela Sistina. São mulheres por meio das quais Deus fala.
b) – Mentiroso é você! – disse Sistina (...) – Todo o mundo lá na escola também detesta você. Você é um maricas. Não quero vê-lo nunca mais.
c) – Quero lhe falar sobre o tigre – disse ele.
d) – Tenho mais mercadoria para você (...) Deixei-a lá no hotel, com Ida Belle.
e) – Eu também preciso dela – disse o pai (...) – Mas não a temos. Nem eu, nem você.

Os grifos são meus. Repare na perfeita colocação dos pronomes. O que me leva a perguntar: que criança ou adolescente (no último exemplo, aliás, trata-se de um adulto) fala desse jeito? A questão está na escolha entre a norma culta da língua e um uso mais espontâneo desta. A linguagem usada pelas duas crianças é impecável, mas cria-se, com isso, uma antipatia entre o leitor e os personagens, já que estes soam falsos. Seja como for, um livro como esse – e esta questão certamente aparece em inúmeras obras – oferece uma excelente oportunidade para discussão em sala de aula, sobre o conceito de “erro”.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Vingança

Escrevo ainda sob o impacto da leitura de Eu não sou um macaco, de Virginie Lou (tradução de Nilma Lacerda, Nova Fronteira). Livro que prende o leitor com descrições que são puro cinema. Vítima de uma humilhação pública, a adolescente Joëlle arquiteta a vingança contra seu agressor. Paradoxalmente, é de seu silêncio que ela adquire força, atitude que desconcerta todos à sua volta.

A chave do título (é prudente desconfiar dele – e também da classificação da obra: infanto-juvenil – e atentar para o texto da orelha, da própria tradutora) é dada somente nos últimos parágrafos. Páginas antes, porém, uma simples cena desencadeia, com sutileza quase imperceptível, o conflito interno da protagonista, que só se resolve plenamente no final.

A propósito, é também este o tema de Bastardos inglórios, de Quentin Tarantino, tão incensado pela mídia, mas que me dá tão pouca curiosidade de conferir (talvez pelo excesso de ketchup que provavelmente espirrará da tela). Se você é fã da violência crua e do sadismo, passe adiante: é tudo que não verá no livro de Virginie. Nele, se a vingança é o fio condutor da narrativa, o pano de fundo são os limites, a ética e a capacidade de empatia humana.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Interatividade

1. Série que acaba de estrear na tevê será baseada na comunicação com o telespectador. No meio da trama, a atriz interrompe a cena, para perguntar ao público o que sua personagem deverá fazer na sequência. Estuda-se o uso da internet, no programa.
2. Cada vez mais “in”, o chamado “teatro total”. Pelo que entendi da proposta, os espectadores, além de ganhar voz, são apalpados e farejados.
3. Nos finais de shows, o público é chamado ao palco, para uma roda.
4. Num dos dias da Bienal do Livro em Olinda, os papéis são invertidos - os escritores sentam-se na plateia, e os ouvintes sobem, para palestrar. Olho neles: é o momento ideal para o poeta – contista, romancista etc – sair do armário e dar uma palinha de seu opus. Leitura que, na melhor das hipóteses, levará uns quinze minutos.

Demorou, mas chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Crônica de um desmanche anunciado

Namoravam há pouco mais de um ano. Um relacionamento tranquilo, mas morninho. Da boca dele, jamais saíram coisas como “Eu te amo”, pois entre a entrega sincera e o palavrório, ficava com a primeira. Tudo corre sereno até que certo dia, numa feira de livros, ele depara com um título meio bizarro. Folheia, hesita, mas decide levar. Toma um baque: é fisgado na hora. Email para a autora, no qual derrama elogios. Resposta. Começa a escarafunchar a obra dela. Segue-se uma troca de emails, que culminaria, dali a um mês, num encontro decisivo.

Pouco tempo depois, andando pela rua, lhe vem à mente, do nada, uma canção. Faixa de um cedê em que tropeçara numa loja em Berlim. Começa a cantarolar – geralmente leva um tempo para que ele se dê conta da letra (ficam em primeiro plano, sempre, a melodia, a harmonia, o arranjo). A música insistia em se infiltrar em sua trilha sonora mental, nos dias seguintes. Dizia assim:

Você não pode me condenar
Nem tem motivos pra estar triste assim
Tudo que eu fiz foi não querer perpetuar
Um sentimento que morria em mim

A paixão não pode esperar
Vive no tempo da flor, fugaz
Aproveitou a distração pra se instalar
E apunhalou o nosso amor por trás


Corta. Duas semanas mais tarde.

Espera a namorada para um jantar. Minutos antes da chegada dela, ele tem um ímpeto irresistível de ouvir o disco de Itamar Assumpção & Naná Vasconcelos. “Itamar, a essa hora? Não tem nada de romântico, nisso!”, queixa-se o seu lado racional. Mas, tratando-se de música, não costuma ignorar a própria intuição.
Soa a campainha. Dali a pouco, enquanto ela prepara os petiscos para acompanhar o vinho, começa a tocar:

Meu amor por você chegou ao fim, é tudo que tenho a dizer
Também não precisa sair assim, espere o dia amanhecer


Tem mais de três minutos, a canção, mas a letra se resume a esses versos. Ou seja, Itamar repete-os várias vezes. Instintivamente, ele aumenta o volume. Faz questão de ficar quieto. Ela parece não ouvir. Fim. Ela puxa papo, fazendo-o abaixar o volume. Não sacou.

Dois dias depois, ao telefone, diante da surpresa dela com seu tom de voz quase monocórdico, ele diz: “Bom, eu estive pensando...”. É a deixa: a ficha cai. Não só a ficha, mas o fichário inteiro.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Meu pé de laranja lima

Levou décadas, mas aí está: minha primeira árvore, plantada. E acompanhada de uma segunda, popularmente chamada de “escovinha”. Parceria com o filhote e mais dois amigos seus (impressionante, a energia desses guris, para trabalhos pesados). A Mulher deu o apoio logístico.

Não deixa de ser significativo: este é também o nome do primeiro romance que me tocou, quando piá.

O filho e a árvore já foram. Dos itens da suposta lista, só me falta, agora, a publicação de um livro.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Interpretação

Na piauí de setembro, um artigo que vale por tudo que já foi publicado em três anos de revista: Fina sintonia, de Dorrit Harazim, sobre o trabalho de interpretação simultânea. Sem contar a ilustração que abre a matéria: é rara, a situação em que o ilustrador acrescenta informações ao texto; aqui, ele pinta e borda.

Dois comentários, apenas: 1) certa altura do texto, há uma digressão em tom laudatório a um ex-presidente da República, que não diz a que veio; 2) Dorrit só não fez referência a uma pequena joia: Sua Majestade, o intérprete – O fascinante mundo da tradução simultânea, de Ewandro Magalhães Jr. (Ed. Parábola). Livro altamente recomendável não só aos aspirantes a essa profissão, mas a todos aqueles cuja profissão faz com que se sintam “a melhor bolacha do pacote”.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Dicionários

Há pouco, foi lançado O pai dos burros – Dicionário de Lugares-Comuns, de Humberto Werneck (Ed. Arquipélago). Nele, uma compilação de frases feitas, clichês e chavões, colecionados pelo autor durante anos. Fui à livraria, seco para comprá-lo, mas ao folheá-lo, ele deixou de ser prioridade. Claro que o livro pode ser útil, como referência. Afinal, é fácil escorregar em palavras e expressões surradas pelo uso.

Mas as comparações são inevitáveis. Apanho na estante uma preciosidade, que achei num sebo: Dicionário do Brasileiro de Bolso – A língua perversa, de Teixeira Coelho (Ed. ARX). Coelho faz uma compilação de palavras e expressões que, fruto de modismos ou para afetar uma falsa erudição, trapaceiam, mascaram a realidade, ou mentem descaradamente. Estão no vocabulário dos economistas, da política, do futebol, do mundo das artes, ou então na boca do povo. Em cada verbete, um comentário do autor. Uma palinha:

CONTUNDIDO

O som é pior que a dor sentida. Considerando o salário que recebem, os atletas e esportistas não podem, como as pessoas comuns, apenas se machucar: eles se contundem.

DE ENCONTRO A

“O contribuinte pode ficar tranqüilo, o governo irá sempre de encontro a seus direitos”. (De um porta-voz).

Sem a menor dúvida. Não precisava dizer.

Nem sempre há confusão com “ao encontro de”, algumas pessoas sabem muito bem de que estão falando.

LEVANTAR UM DADO

Os dados provavelmente estão sempre no chão ou, em todo caso, em algum nível inferior ao daquele que por eles procura, caso contrário seria impossível levantá-los. Os dados não são mais simplesmente obtidos ou conseguidos. Agora tudo é mais difícil. O conhecimento é um poço profundo e o pesquisador, um halterofilista.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Pessoa

É raro acontecer, mas certos poemas refletem muitíssimo bem o meu estado de espírito. Foi o que rolou ontem. A ele:

O guardador de rebanhos
Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)

Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou suave de chuva.

Ou tempestuoso como se acabasse o mundo,
A tarde suave e os ranchos que passam
Fitados com interesse pela janela,
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,

E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito,
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.