quarta-feira, 20 de outubro de 2010

De Márcio Faraco para Carlinhos Brown (1)

Escrevi este texto há cerca de três anos, para uso numa oficina sobre música popular que dei em Mogi das Cruzes. Relendo, voltou à tona o prazer que senti ao dar o curso. Compartilho, portanto, com meus leitores. Na sexta-feira, levo a segunda parte ao ar.

***
Chuva de Vidro, de Márcio Faraco. (CD Com tradição, Universal Music France, 2005)

Em frente à multidão alucinada
Eu escolhi o seu lado
Aí levei garrafa

Disseram, disseram que era o dia errado
Mas qual o dia certo
Nesse mundo virado?

Visavam seu corpo em movimento
Mas ali naquele momento
Acertaram nossa alma

Olha a garrafa no ar!

Chuva de vidro
Pedras do Rio
Água na Barra
Assovio
Vilã manada
Nada ouviu
Do ouro do povo do Brasil

Vivi pra ver esse pesadelo
Não quero ver mais uma vez
Verões de tempestades de gelo
E a nação no corredor polonês

Jogando uma pedra no espelho
Não vou deixar de ser o que sou
Um violeiro é um violeiro
E o baião não é rock and roll


Faraco dedicou esta canção a Carlinhos Brown. Convidado para cantar no festival Rock in Rio, janeiro de 2001, Brown subiu ao palco na mesma noite em que tocariam as bandas Oasis e Guns’n Roses. Partiu dos fãs desta última a saraivada de garrafas d’água na direção do cantor, enquanto ele, que descera uma passarela em meio ao público, cantava seu hit A namorada.

Disseram que era o dia errado. Muito se falou a esse respeito. Surgiu, entre outros, o comentário de que Brown jamais deveria ter sido escalado para tocar naquela noite, para um público como os fãs de Guns n’Roses. Sua declaração sobre estar no “dia errado”: “Eu tinha de estar ali naquela noite, para passar o meu recado àquela molecada, que infelizmente renega a música de seu país".

Pedras do Rio
. Clara referência ao nome do festival, Rock in Rio. Dentre as várias acepções da palavra inglesa rock (balanço, embalo, apoio, amparo, rocha, rochedo, penhasco), Faraco optou pela analogia com as pedras: garrafas voavam na direção de Carlinhos Brown, numa nítida evocação ao ritual de apedrejamento que ainda existe em países muçulmanos.

Água na Barra. O verso é pronunciado com as sílabas escandidas. Há um trocadilho auditivo, aqui: além da clara alusão ao bairro carioca, a impressão é que também se ouve A Guanabara. Impressão reforçada pelo fato de o “erre” receber uma pronúncia intermediária entre aquela dada às palavras com dois “erres” e às de um só. Notar que no encarte bilíngue (português-francês)*, ao lado desse verso consta “Jets de bouteilles d’eau à Barra”, ou seja, “arremesso de garrafas de água na Barra”, bem como a referência à Barra como bairro carioca. Se na tradução para o francês a poesia e a prosódia do verso foram perdidas, em contrapartida o episódio foi contextualizado para o ouvinte/leitor francês.

* Caso você queira ouvir a canção, terá de importar o CD. Apenas “Interior”, o segundo de seus cinco discos, foi lançado no Brasil, pela Biscoito Fino.

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