segunda-feira, 30 de agosto de 2010

O globês

Versão simplificada do inglês, chamada de “globish”, que contém apenas 1,5 mil palavras, é a nova moda. Seu objetivo é facilitar a comunicação para quem não tem o inglês como língua materna. Criação de um diretor de marketing de uma multinacional.

Regras para falar o novo idioma: 1) Evitar expressões idiomáticas; 2) Evitar palavras difíceis; 3) Usar sempre a voz ativa, no lugar da passiva; e 4) Não fazer piadas (caberia aqui, o uso sistemático – ops, palavra difícil, a ser evitada – do “sarcasmômetro”, do qual falei, dia desses).

Bem, é fato que, para muitos falantes, a novidade não é grande coisa. Afinal, o vocabulário por eles utilizado no dia a dia não vai muito além de 1,5 mil palavras.

Imagine se a moda atinge o português. Além de extinguirmos expressões como “quebrar o galho”, “estar com a megassena acumulada”, “molhar o biscoito” etc, desapareceriam brincadeiras como as seguintes, de pronúncia: Diga rapidamente (idealmente, com sotaque português, ou carioca): “Se nevasse, você usava esqui?”, o som parecerá russo. Faça o mesmo com a frase “Feridas doem e ardem, hemorroidas idem”, parecerá alemão.

Na mesma linha, o célebre poema da rosa, cuja primeira estrofe é “No alto daquele cume / plantei uma linda roseira / A rosa no cume nasce / A rosa no cume cheira”, quando recitado, deverá ser entendido literalmente. Nada de risinhos dissimulados.

Uma ideia tão estimulante quanto a possibilidade de num futuro próximo, engolirmos pílulas, daquelas usadas pelos astronautas, substituindo as refeições.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Drops

1. Quebro o jejum de meses, e saio da toca para ver um show em Sampa. Ceumar, no Sesc. Dois detalhes que merecem registro: a) a quantidade de ceumaretes dispostas(os) a lotar um teatro numa noite de quarta-feira. À menor deixa da cantora, elas/eles cantam o repertório inteiro juntos. Ainda assim, momentos interessantes de interação entre artista e público; b) a onipresença dos carentes, dispostos a usar qualquer artifício para atrair uma mini-plateia. Fazendo do espaço público a extensão de seu próprio quarto. O grave é que não me refiro, aqui, aos adolescentes. É o tipo de atitude que estimula meu rápido retorno à toca. Talvez seja um caso de misantropia crônica.

2. Gafieiras. O link para o site já está na lista acima. Há tempos não passeava por ali, mas tive o clique quando escrevi sobre Tatit e Hélio Ziskind. Um endereço imprescindível para os amantes da boa música nacional, e verdadeira perdição se você é dos que navegam à deriva pela rede. Dica para os que dão de ombros ao papo furado de que “depois de Chico, Caetano e Gil, não se fez mais nada de interessante em nossa música”.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Meu dia de Dersu Uzala

Trabalho no micro, tarde de ontem. Súbito, ouço Flávio, o vizinho, berrar meu nome. Naturalmente histérico, ele, mas dessa vez seu tom de voz ultrapassava o normal.

“Vem cá, vem ver isso!”. Me leva até o terreno ao lado, aproximadamente 50 metros adiante da cerca que delimita nosso espaço. Fogo. Vários focos, aqui e ali. “Chamo os bombeiros?”, pergunto. “Esquece, eles nem chegam até aqui”. Ele arranca um galho grande com folhas e começa a extinção, no braço. Imito, mirando os demais focos. Tudo seco, sem chover há dias, o fogo se espalha rápido. Sorte não estar ventando, senão babau.

Cerca de 40 minutos, durou a função. Olho para o resultado, a grande mancha preta e duas cobras mortas (“não conseguiram fugir, olhaí”, diz ele), e me vêm à mente flashes do belíssimo filme de Kurosawa, que assisti há uns bons 30 anos. Me senti o próprio Dersu, gritando o nome do Capitão nas estepes da Rússia.

Nem nos sonhos mais delirantes eu me imaginaria dando uma de bombeiro amador, a essa altura da vida. Já disse aqui, e repito: de tédio não se morre, nestas bandas.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Mac Javali


Este é o novo anúncio publicitário que está sendo veiculado na França, hambúrguer e batata frita no cardápio de Asterix e cia.

A aldeia povoada pelos irredutíveis gauleses não mais resiste ao invasor.

Claro que os direitos foram cedidos por Uderzo, o desenhista. Mas, em respeito à parceria genial que encantou fãs no mundo inteiro, a memória de Goscinny (o roteirista, falecido em 1977) poderia ter ficado sem essa “homenagem”.

É como se Angeli, por exemplo, permitisse que os Skrotinhos virassem protagonistas de um comercial de, sei lá, fraldas. Ou que Bob Cuspe se juntasse à campanha das gravadoras contra a pirataria de CDs.

Como disse Aran, o único bastião de resistência que restou é o Bastião Salgado.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Essa é pra tocar no rádio (7) - Final

Luiz Tatit e Grupo Rumo

Tivesse eu que selecionar uma pequena amostra para quem desconhece Tatit, destacaria as canções em que o narrador dialoga com a mulher amada: a Cristina de “Acho pouco”, a Ivone de “Aceita a serenata”, a Odete de “Olhando a paisagem”, a Sofia de “Haicai”. Letras permeadas por uma deliciosa autoironia - um traço presente, aliás, em toda sua obra.

Na fase pós-Rumo, Tatit lançou quatro cedês: Felicidade, O meio, Ouvidos, uni-vos, e o recente Sem destino. Dentre eles, O meio tem um encanto especial. Álbum temático (assim como Felicidade), suas letras têm como fio condutor o distanciamento dos extremos. A busca da medida justa e do meio-termo, seja no contexto do envolvimento afetivo ou em outro qualquer. Curiosamente, o disco traz ecos de um curso de Linguística dado por ele, na FFLCH, de que participei como aluno. Com a mesma paixão que demonstra pela composição, ele aplicava a teoria semiótica de Greimas às letras de nosso cancioneiro. Árida, a teoria tratava dos estados de conjunção e disjunção do sujeito. Em termos palatáveis: ora a pessoa está de posse do objeto de seu desejo, ora não. Comentário do mestre-cantor, no meio de uma das análises: “Vivemos sempre num movimento pendular, entre a ‘euforia’ proporcionada pelo ‘ter’ e a ‘tristeza’ do ‘não-ter’. Mas o mais comum mesmo é ficarmos no caminho do meio”. Na mosca: é este o caminho percorrido por todo o álbum. Não é gratuito, por exemplo, que em “Trio de Efeitos”, entre o “bom” e a “má”, o próprio Tatit assuma o papel do “médio”, do “medíocre perfeito”.

Pequena digressão: uma relativa dificuldade, ao seguir o curso, que fiz nos anos 90, era a de separar meus papéis de aluno e de fã, época em que a “tietagem” ainda fazia algum sentido. Assim, volta e meia eu fazia anotações quando, de repente, uma frase sua trazia uma inflexão que quase me levava a interromper, dizendo: “Ei, escutaram isso? É puro Rumo!!”.

Ainda Hélio Ziskind, sobre Tatit: “Ele é obcecado, na hora de compor; se alguém já fez, para ele não interessa. Quer fazer diferente”. Não surpreende que tenha, entre seus parceiros, gente como Itamar Assumpção. Outras parcerias que resultam numa combinação perfeita entre letra e música incluem José Miguel Wisnik (recomendo “Para Elisa”, de seu álbum São Paulo Rio), Ná Ozzetti e Dante Ozzetti.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

TOC

No post de ontem, eu falava da simplicidade das canções, e como se chega até ela. Horas depois, deparo com a seguinte passagem, do livro que estou lendo, “The Muse Within”, de Jon-Roar Bjorkvold. Tradução livre, minha:

“Picasso afirmou, certa vez: ‘Levei uma vida inteira para aprender a desenhar como uma criança de seis anos’”.

Tenho funcionado como um verdadeiro pára-raios de sincs.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Essa é pra tocar no rádio (7) *

Luiz Tatit e Grupo Rumo

Há exatos 30 anos acompanho o trabalho de Tatit. Tivesse confiado nas primeiras impressões ao ouvir o Rumo, teria desistido ali mesmo. A reação de muitos, diante da primeira audição: mas ele está cantando ou falando? Fato é que as canções do Rumo aproveitam a prosódia da linguagem cotidiana, a ela acrescentando os acordes e a harmonia. Semanas atrás, saiu uma matéria no jornal sobre a banda Memórias de um Caramujo, que bebe na fonte do Rumo. Entrevistado, Tatit elogia o trabalho deste grupo e diz: “"É preciso incluir elementos que durem mais na escuta do ouvinte, às vezes é um bom refrão ou um tratamento musical mais profundo, que permita à pessoa entrar mais na música, não só pelo viés da letra."

É justamente o que acontece com o Rumo. De fato, ouvidas repetidamente, algumas de suas letras – é o principal compositor do grupo – esgotam a novidade. Mas tamanha é a sofisticação harmônica e dos arranjos dessa “big band” que, uma vez ultrapassado o estranhamento inicial, as canções pedem muitas outras audições.

Foram seis discos gravados. Início dos anos 90, Luiz Tatit e Ná Ozzetti iniciam carreira solo. Paulo Tatit junta-se a Sandra Perez, e passam a produzir a série de cedês do Palavra Cantada, que conquistaram, em igual medida, o público infantil e o adulto. Hélio segue compondo trilhas para programas da TV Cultura.

Do trabalho solo de Tatit, o “canto falado” praticamente desapareceu. Em compensação, disco após disco, foi se revelando um grande artesão de nosso cancioneiro. Dá para apostar sem erro que suas letras são buriladas à exaustão, para caber na medida exata, para cair, como dito em “As sílabas”, “como uma luva na canção”. O resultado é de uma simplicidade espantosa. A propósito, Hélio Ziskind declarou certa vez que, para Tatit, o rótulo “música para crianças” é uma bobagem. Para ele, existe música, e ponto final. Nada mais verdadeiro, e fato comprovado: há muitos anos, meu filho hoje adolescente tem os discos de Tatit em sua lista de favoritos.

(*) Texto em duas partes. A segunda irá ao ar na sexta-feira.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Rá-tim-bum

“Tudo era apenas uma brincadeira, que foi crescendo, crescendo, me absorvendo...”. A canção de Peninha é uma espécie de melô do Na Ponta da Língua, que hoje completa um ano de vida.

Pintou uma crise de identidade, no início, causada pelo chavão que dá nome ao blog. Mas logo fiz as pazes com ele. Originalidade demais também cansa.

Deve ser comum a todos os blogueiros, a convivência com certas neuras. A suposta necessidade de postar todos os dias. Para quê, estou n’alguma corrida de cavalos? Um excesso de aspas em meus textos? Sim, estou de olho nelas. Se o leitor nunca se manifesta, estou falando com quem? Não vou afetar um ar blazé, dizendo que não dou a mínima pelota para o silêncio dele. Mas, assim como na literatura, a interação se dá em outro plano, raramente numa caixa de comentários de blog.

A propósito, Patrícia, numa noite dessas em Sampa, contrariando o senso comum, largou sem pretensão uma frase que ficou saltitando cá no trapézio da mente: “No fundo, você escreve é para si mesmo”. Sempre verdadeiro, se o que se busca não é a aprovação do outro, mas suprir uma necessidade interna.

Em frente, pois. A ideia é me continuar me divertindo. Com a música. Com as letras. Com a língua.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O pijama que dá credibilidade

Pesquisa feita com 12 mil pessoas em 924 pontos do país revela que, para 73,6% dos entrevistados, os telejornais são o principal veículo informativo sobre atos do governo federal. Para 33,7%, William Bonner é o apresentador mais confiável. Em seguida, vêm Fátima Bernardes, com 18,15%, e Boris Casoy, com 4%. Informações de matéria do Aliás de ontem.

Notícias de bastidores dão conta de que Bonner é um dos que mais bombam (no vocabulário descolado dos teens) no Twitter. Isso porque, além de falar na linguagem dos tuiteiros, ele ali comparece com regularidade, e chega a aparecer de pijama em pleno ar (no vídeo do twitter, no JN ainda não).

Como diria o velho d(e)itado: Diz-me que pijama vestes e dir-te-ei quem és.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

A arte de não dizer nada, com elegância

“A missão de nossa empresa é oferecer aos nossos clientes um desempenho otimizado, e a ele agregar valor. Reduzir o tempo gasto, evitar o retrabalho e empregar soluções ganha-ganha: estes são nossos objetivos, ao oferecer um porfolio de serviços customizados. Serviços que representam, de fato, um plus a mais”.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Nada de novo sob o sol?

Dia desses, entro numa loja, rádio ligado, ouço os primeiros acordes, inconfundíveis, de “Here comes the sun”, de George Harrison. Compassos depois, entra uma voz... de mulher! Tirante a voz, todo o restante era da canção original. Sinal de que o descaramento não tem mais limites, é o império do Control C – Control V. Café requentado no cardápio musical.

O que explica a atual enxurrada de regravações? Tributo ao autor, aposta no suce$$o fácil, preguiça de buscar repertório, medo de apostar no novo... Ou tudo isso junto. Felizmente, nosso cancioneiro tem lugar para tudo. Inclusive para artistas que recusam a pasteurização geral, buscando dizer o que ainda não foi dito, ao mesmo tempo em que relembram o já consagrado. Memorável, a afirmação de Itamar Assumpção, ao gravar Ataulfo: “Regravar Ataulfo em ritmo de samba não acrescentaria nada à sua obra”. A lista que segue dá uma amostra de recriações (este, o termo mais exato) musicais, com arranjos de extrema riqueza.

1. “Mulata assanhada”, de Ataulfo Alves. Álbum Ataulfo Alves por Itamar Assumpção – Pra sempre agora, de Itamar Assumpção, 1996.
2. “Domingo feliz”, de Daniel Boone e Rod McQueen, versão de Rossini Pinto. Álbum Na tradição, de Maurício Pereira, 1995.
3. “Esquadros”, de Adriana Calcanhoto. Por Kléber Albuquerque. Álbum Só o amor constrói, de Kléber Albuquerque e Miniorkestra de Polkapunk, s/d.
4. “Hello, Goodbye”, de Lennon/McCartney. Por Milton Nascimento. Álbum O Planeta Blue na estrada do sol, 1991.
5. “Impossível acreditar que perdi você”, de Márcio Greyck e Cobel. Por Rita Ribeiro. Álbum Rita Ribeiro, 1997.
6. “Pra sempre e mais um dia”, de Marina Lima e Antônio Cícero. Por Vânia Bastos. Álbum Diversões Não Eletrônicas, 1997.
7. “You’re going to lose that girl”, de Lennon e McCartney. Pelo trio Música Ligeira. Álbum Música Ligeira, 1994.
8. “Trem das Onze”, de Adoniran Barbosa. Pelo grupo Catavento. Álbum Adonirando, 1997.
9. “Ronda”, de Paulo Vanzolini. Pelo grupo Premê. Álbum Alegria dos Homens, 1991.
10. “Chovendo na Roseira”, de Tom Jobim. Pelo grupo vocal Banda de Boca. Álbum Banda de Boca, 2007.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Mãos na terra

Manhã ensolarada de sábado, após uma semana de chuva com pouca trégua. Meu filhote aparece na varanda com vários pacotinhos de sementes. “Vamos plantar?”

Após um ano de meio de vida na roça, dizer que já me sinto como um deles soaria afetado. Minha alma é urbanoide, não tem jeito. Mas volta e meia me baixam os “cinco minutos”. Ao convite de Lívio, não pestanejei. Em minutos, estávamos de carrinho, escavadeira e pás na mão. Resultado do fim de semana: mamão, miosótis, girassol e pepinos plantados, diretamente na terra ou na semeadeira.

Avesso a rotinas previsíveis, sou estimulado pelo contraste radical: muito “papo-cabeça” em meio a traduções, versões e revisões, e mãos na terra para compensar. E nada como descobrir (ainda que lentamente), para além da música e das letras, outras fontes do sagrado.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Ode ao flato

“Que ninguém diga num último resquício de injustiça que os risos que o peido provoca seriam antes sinais de piedade do que marcas de uma verdadeira alegria; o peido contém em si próprio, independentemente dos lugares e circunstâncias, um divertimento que é essencial.

Ao lado de um doente, uma família em prantos aguarda o momento fatal que a privará de um chefe, um filho, um irmão; um peido, saído com estardalhaço do leito do moribundo, suspende a dor dos assistentes, faz nascer um brilho de esperança e provoca pelo menos um sorriso. Se até junto a um moribundo, onde tudo exala tristeza, o peido consegue alegrar os espíritos e dilatar os corações, como é possível que se duvide do poder de seus charmes? Com efeito, sendo suscetível de diversas modificações, ele varia os prazeres que proporciona, e é assim capaz de agradar a todos. Por vezes saindo com precipitação, impetuoso em seu movimento, ele imita o estrondo de um canhão, agradando assim ao homem de guerra; por outras, retardado em seu percurso, tendo a passagem dificultada pelos dois hemisférios que o comprimem, imita os instrumentos de música. Algumas vezes ruidoso em seus acordes, frequentemente flexível e macio em sua modulação, ele é capaz de agradar as almas sensíveis e a quase todos os homens, pois raros são os que não gostam de música”.

A arte de peidar – Ensaio teórico-físico e metódico para o uso das pessoas constipadas, das pessoas graves e austeras, das senhoras melancólicas e de todos aqueles que insistem em permanecer escravos do preconceito, de Pierre-Thomas-Nicolas-Hurtaut. Tradução de Bruno Feitler, Ed. Phoebus, 2009.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Summerhill, por Matthew Appleton (final)

A polidez natural

As maneiras compulsivas não são mais atraentes do que o xingamento compulsivo, e não entendo por que os adultos têm tamanho prazer em incutir um comportamento tão antinatural e rigoroso em seus filhos. É como se a criança tivesse nascido naturalmente degenerada e precisasse ser salva de sua própria natureza. De um lado, o uso de palavrões é considerado ruim, e assume-se que a criança que não for adequadamente treinada recairá nessa “maldade”. De outro, ter maneiras é considerado bom, mas não se supõe que a criança será naturalmente “bondosa”. A bondade tem de ser inculcada, a criança deve ser educada para ser boa. É a noção inconsciente do pecado original que ainda reside em nossas atitudes em relação às crianças.

As crianças são instruídas a dizer “por favor” e “obrigado” como um papagaio é ensinado a dizer “olá” e “fulano é um menino bonzinho”. Tem tão pouco significado num caso quanto no outro. Se eu dou algo a uma criança, aprecio o deleite espontâneo dela, uma resposta verdadeira que significa um prazer para nós dois. Ambos nos absorvemos na troca. Esse sentimento é interrompido e incomodado quando alguém se intromete e pede à criança para dizer “obrigado”. Ela repentinamente sente que fez algo de errado, que não respondeu corretamente. O prazer se transforma em desconforto e o sorriso verdadeiro é substituído por um falso, no instante em que ela pronuncia as palavras obrigatórias. Isso termina em um instante, mas estragou algo real e significativo que fluía entre nós dois.

Nenhum dano é causado quando se ensina às crianças que “por favor” e “obrigado” são respostas normais no meio social. Seria estranho não familiarizar as crianças com a cultura local à qual elas pertencem. Mas elas deveriam ter a liberdade de adotar tais respostas em seu próprio tempo, e não deveríamos fazê-las se sentir culpadas se esquecem de dizer essas palavras.

Não tenho a expectativa de receber gratidão em troca de algo que dei ou fiz por elas, a menos que isso surja de maneira espontânea. A expectativa de gratidão se baseia na premissa de que as crianças estão em débito conosco. Se não conseguimos dar livremente a elas, essa falha é nossa, não delas. Sentir-se constantemente em débito é sentir-se inferior. A prostituta é condenada ao ostracismo por estipular um preço para o amor; contudo, quando o amor dos pais carrega consigo um preço — e um preço que é bem maior do que aquele — ninguém desaprova. Um pai pode dizer quantas vezes quiser para uma criança “Eu te amo”, mas enquanto esse amor tiver de ser conquistado através de pequenas insinceridades e demonstrações de gratidão, a criança não se sentirá verdadeiramente amada pelo que é.

Não tentamos estimular boas maneiras em Summerhill, e entretanto nossas crianças maiores estão entre as pessoas mais polidas que conheço. Quando digo isso, não quero dizer polidez no sentido formal — por favor, obrigado, com licença (embora elas certamente possam começar a usar tais expressões quando quiserem). Elas são polidas de uma forma genuinamente cortês e interessada, com maior profundidade. Minha companheira, Gunn, que é norueguesa, acha meus modos ingleses um tanto quanto exagerados às vezes. Ela fica irritada com o número de vezes que digo “obrigado” quando vamos fazer compras. Mas isso nada tem a ver com verdadeiras boas maneiras. Trata-se somente de etiqueta social, que varia de país para país. As verdadeiras boas maneiras consistem em ser consciente em relação a outras pessoas e corresponder aos sentimentos delas, e não em frases repetidas como que por papagaios. Aquelas requerem um ativo estado de alerta emocional, estas são somente escombros sociais.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Massa polar


Nada fácil, essa vida no campo. No registro acima, o blogueiro prepara a lenha para o café da manhã.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Uma tradução primorosa: Asterix

Só descobri Asterix relativamente tarde, por volta dos 22 anos. Mochileiro, eu perambulava pelo mundo, e o exemplar era em inglês. Foi o impulso definitivo para que eu investisse em meu primeiro dicionário monolíngue. Isso porque eu começava a perceber os frequentes jogos de palavras (os autores de língua inglesa adoram brincar com as possibilidades da homofonia, peace/piece, boar/bore etc), e me dizia: pera lá, essa piada não deve funcionar na língua original! Será que a tradução melhorou o original? Começava a ganhar formas, ali, o embrião de um tradutor.

Pois bem, relendo Asterix and Cleopatra (tradução para o inglês de Anthea Bell e Derek Hockridge, de 1969), as pupilas voltam a brilhar com duas passagens, que transcrevo a seguir, invertendo apenas a ordem em que elas aparecem na história.

1. Em visita a Luxor, no Egito, Asterix e Obelix estão diante de um obelisco. Asterix: “Não, não, e pela terceira vez, não, Obelix. Esta coisa no meio do vilarejo? Ficaria ridículo”. Obelix: “We shall never be in concord over this”. Frase que jamais seria dita em linguagem coloquial. Nela, ele diria algo como “We’ll never agree on this point”. Consulto o original, em francês, e ali está: “Nos opinions ne concordent jamais!”, também em registro formal (na linguagem cotidiana, “on est jamais d’accord”). Genial, a sacada de Goscinny, imediatamente percebida pelos tradutores. Isso porque em Paris, no centro da Place de la Concorde, há um obelisco (pilhado pela França numa das guerras napoleônicas).

2. O arquiteto de Cleópatra, Edifis (Numérobis, na versão original) é convocado por ela, que fizera uma aposta com César. A rainha lhe promete construir, em três meses, um palácio magnífico em Alexandria, para convencer o imperador quanto à grandeza dos egípcios. Edifis, desesperado com a limitação do prazo, viaja para a Gália, ao encontro de seu amigo druida. Sua poção mágica e nossos heróis são os únicos que podem lhe tirar da enrascada. Cena: Edifis chega ao vilarejo e diz: “My dear old Getafix, I hope I find you well?”. No original: “Je suis mon cher ami, très heureux de te voir”. Comenta o druida, com os aldeões: “É um alexandrino...”. Seja no original, seja na tradução, você pode contar: há doze sílabas na frase do arquiteto. Um verso alexandrino, portanto.

E há quem alimente a crença de que os tradutores serão, um dia, substituídos pela máquina...