sexta-feira, 22 de outubro de 2010

De Márcio Faraco para Carlinhos Brown (final)

Vilã manada
nada ouviu
do ouro do povo do Brasil



Além de evocar a irracionalidade do público, manada também remete a um grupo numeroso de pessoas passivas, acríticas. É comum que, ao fazer parte do coletivo, o homem tenda a abdicar de sua capacidade de discernimento, delegando-a ao grupo. As decisões deste passam a ser soberanas, em detrimento daquelas tomadas pelo indivíduo, que busca preservar sua imagem perante os demais. Sua identidade é, portanto, diluída.

A questão da identidade, com efeito, é retomada:

Jogando uma pedra no espelho
Não vou deixar de ser o que sou


Que imagem temos de nós mesmos? Aceitamos nossa identidade? Em que medida nosso “complexo de vira-lata” está sendo alimentado? Ainda nos divertimos com frases do estilo “Este país tem saída: Galeão e Cumbica”? Prestando ou não atenção ao “ouro do povo do Brasil”, não há como fugir do espelho. Ele segue refletindo nossa imagem, com a qual temos de lidar.

Não quero ver mais uma vez (...) a nação no corredor polonês. Curiosa, a definição dada pelo dicionário Houaiss para “corredor polonês”: “uma brincadeira [grifo meu] entre crianças, em que se forma uma passagem estreita formada por duas fileiras paralelas de pessoas que batem com as mãos, pés e/ou com objetos no indivíduo que, por punição, castigo ou brincadeira, deve atravessá-la”.

Brincadeira? A questão é identificar, em meio às vaias e à saraivada de garrafas, o limite entre o componente lúdico e o sádico. É oportuna, a lembrança do assassinato, em 1997, do índio Galdino Jesus dos Santos, em Brasília, por um grupo de adolescentes que, após ter ateado fogo em seu corpo, declararam no Tribunal de Justiça que tinham somente a intenção de “fazer uma brincadeira”. Faraco, ao registrar de modo poético o lamentável episódio do Rock in Rio, evoca nosso passado recente.

Elementos musicais reforçam o sentido do texto. É o caso do ritmo acelerado da canção, com o baixo participando ativamente da linha melódica, a percussão em primeiro plano. Duas referências sutis aqui: o ritmo reforçando a homenagem a Carlinhos Brown, cuja música tem forte base percussiva, e a alusão ao frenesi da cena relatada pelo compositor. Ritmo que faz eco à agitação e ao tumulto retratados no texto da canção.

Sincronicidade, e das finas: minutos depois de terminar este texto, abro a porta de casa* e deparo com uma garrafa de água mineral largada sobre o canteiro. Canteiro transformado em lixão a céu aberto, e repare só com que objeto... A agressão a Carlinhos Brown é a mesma de que sou alvo. É uma mera questão de grau.


* À época, na Pompéia, em Sampa.

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