segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Jean Charles

Aparentemente, em se tratando de cinema, quanto menor o conhecimento prévio sobre a história a ser contada, melhor. Só depois de ter assistido a Jean Charles, soube que ela continha vários elementos de ficção, que o diretor Henrique Goldman revelou ter acrescentado à história real. Admirável, a sobriedade com que o filme é conduzido. Nada de efeitos mirabolantes, nenhuma afetação da parte do elenco (composto também de não atores), extrema discrição na música.

Facílimo, aliás, errar a mão na trilha sonora. Impressiona a quantidade de filmes que tem escorregado nesse aspecto – nada mais desagradável que a trilha que tenta moldar as emoções da plateia, no estilo das reportagens “emotivas” do Fantástico, com closes no rosto do entrevistado e violinos ao fundo. Parecem apostar no fato de que o espectador está se lixando para o que ouve (como acontece numa infinidade de lojas, restaurantes e espaços públicos, em toda parte). Uma aposta na audição embotada.

Numa época de celebridades, em que é comum a estética do filme ganhar mais importância do que a história propriamente dita (um olho na câmera, outro na possível indicação ao Oscar), filmes como Jean Charles são um verdadeiro bálsamo.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

1, 2, 3... testando... som

Lépido

Com minha conexão atual, quando tenho, por exemplo, de enviar anexos a um email, o normal é eu clicar nos comandos e, então, ligar a bomba do poço, limpar o bebedouro dos beija-flores, cortar a grama de metade do terreno e ainda passar um café. Ao voltar, o micro está prestes a terminar a tarefa.

Ao postar da metrópole, portanto, a velocidade de banda larga dá quase vertigem.

Tudo uma questão de encontrar o modus vivendi. Lá, com o cágado (proparoxítona, por gentileza). Aqui, com a lebre.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

De chácaras, sítios e poços

Por todo lado, cidade ou campo, cartazes anunciando venda de chácaras e sítios. Volta e meia um deles se gaba em letras garrafais: com escritura. Sugestão de que terreno grilado, por estes lados, deve ser como chuchu na serra. O poço valoriza, e muito, o terreno. Sobretudo se for, como alardeia um dos anúncios, cartesiano. Perfuro, logo existo.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Rituais

O domingo começa com a expectativa: ida a Sampa, levando meu filhote de volta. A escolha de um livro que não pese muito na mochila (é só para a ida). Dia em que compro o jornalão reservado dois dias antes. Até pensei em assinar, é leitura que me aproxima do burburinho da urbe, que também me agrada. Os poréns: a) vai saber se o motoboy chega até aqui; b) ler online, sendo essa a única opção – conforto zero; c) elimino o melhor de tudo: a expectativa.

Corta para um flashback. Issy-les-Moulineaux, banlieue parisiense, meados dos anos 90. Meus contatos com o Brasil eram por carta. A escolha das melhores canetas, o deslizar delas sobre o bloco, a caligrafia que respondia aos humores: se escrevia a contra-gosto, eram inevitáveis os garranchos. Idas frequentes ao correio. E, melhor de tudo, o ritual diário de ir à boulangerie e topar com a moça dos correios no saguão do prédio. Correspondência trazida de bicicleta. A ansiedade para ver se chegara algo, o quase fetiche de tocar nos envelopes (grossos, como se escrevia, na época) vindos do patropi. O café da manhã tomado com notícias daqui. Via embratel, ficava sabendo quando determinada carta foi postada, e daí os cálculos mentais.

Rituais que o email eliminou. Agora, tudo é rápido. O que mais é entregue pelo carteiro das grandes cidades, além das contas e do marketing-entulho das empresas? O que se faz nas filas de correio, além do pagamento da Telesena?

Ficarei sem a assinatura. Abro o jornalão ainda no ônibus, onde ninguém mais lê. 40, 50 ou mais almas que nunca se alimentam de leitura. Porque, nesse percurso, chacoalha demais (não mais que o normal)? Azia coletiva? Chego, e banho tomado, retomo: leitura que prossegue (é o dia em que o jornal tem sustança) ao lado da Mulher, felino em sua barriga, grilos ao fundo e meia-luz.

Rituais que dão sabor à vida no campo.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Leitura compulsória

“Acho que a literatura não tem uma função importante na sociedade. Por outro lado acho que a literatura sempre foi e é e continuará a ser minoritária, para poucos. E acho que a literatura tem que ser opcional. Há muitos colegas meus pregando a obrigatoriedade da literatura. Fazer os jovens lerem. Não gosto disso. Na nossa sociedade tudo vai se tornando aos poucos obrigatório, deixemos a literatura ser uma atividade optativa. Leia quem quiser. Quem quiser ler terá muita felicidade na vida, mas não querendo ler também se pode ser muito feliz. Não sou um evangelista da leitura. Agora isso está na moda, promover a leitura. Há até fundações que se dedicam a isso. Suspeito que todos os que fazem tal trabalho, e ganham um bom dinheiro ao fazê-lo, nunca lêem. Nós que lemos não somos tão inclinados a promover a leitura. Talvez por já termos aprendido que é a atividade mais livre que alguém pode exercer”.

Do escritor argentino César Aira (via site Todoprosa).

Já trabalhei para “evangelistas” como estes e tropeço com eles há alguns anos, em toda parte. Daí meu endosso (quase) completo à declaração acima.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Dois livros

Confesso que sempre vi um quê de afetação no comentário: “Não conseguia parar de ler esse livro, varei a noite”, coisa e tal. Até que aconteceu comigo, nos últimos dias. E em dose dupla.

Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos, de Ana Paula Maia (Record). Mais de uma vez ouvi dizer que aquilo é Tarantino no papel. Ignorei, assim como não leio resenha antes de ir ao cinema. Em duas novelas, o retrato de subempregos que, aos olhos da classe média/alta, pertencem unicamente ao universo da escória. Relatos que trazem um enorme incômodo ao leitor, que se vê constantemente espelhado ali. Mas a crueza da violência das duas histórias incomoda menos que a exposição, a cada cena, da miséria que nos cerca e invade. Miséria não só material, mas também moral. Fazia um bom tempo que eu não era tomado por essa mistura de reações. Riso, indignação, empatia, tudo junto.

Amanhã, numa boa, de Faïza Guène (tradução de Luciana Persice Nogueira, Nova Fronteira). Doria, de 15 anos, mora com a mãe num subúrbio parisiense. Seu pai abandonara a família, voltando para sua terra natal, o Marrocos. Em tom cáustico, narra suas conversas com a psicóloga, com a assistente social, a relação com o amigo traficante que acaba preso. Vêm à tona os problemas de integração na sociedade francesa. Permeando toda a narrativa, a inconformidade de Doria com a hipocrisia e artificialidade nas relações sociais. Rebeldia que é também expressada na linguagem, que não poupa ninguém. Talvez nos perguntemos onde estão os adolescentes indignados e revoltados, ao nosso redor. Se estão, não demonstram. Ou então represam estes sentimentos até o dia em que surge uma Geisy, lhes dando de bandeja os melhores pretextos para extravasar o ódio.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

HQ e Woody Allen

1. Uma pequenina mudança em minha identificação. Necessária, ainda que tardia. Achei que a simples diferença, entre o Z dele e o meu esse, daria conta do recado. Mas não. Um desavisado pode cair aqui de paraquedas, achando que é o blog do cartunista e desenhista, Luiz Gê. Embora ele não faça parte de meu panteão particular (que inclui Spacca, Negreiros, Fernando Gonzales, Laerte e Angeli), teve também enorme importância em minha formação de adolescente fissurado em HQ, anos 80. A experiência de ouvir Tubarões Voadores, de Arrigo, lendo a história desenhada por ele (em tempos de vinil, ou seja, não era esse microencarte que temos hoje com os CDs), foi impactante. Lembro nitidamente, também, de uma história sobre a Avenida Paulista, num livro de edição especial. O traço do cara é de babar.

2. É em momentos como esse que me pergunto por que não moro mais em Sampa. Quarenta e um filmes de Woody Allen na telona, a partir de hoje, no Centro Cultural Banco do Brasil. Depois de ter lido o belíssimo Conversations with Woody Allen, de Eric Lax, a vontade é de assistir um por um, para depois saborear novamente o livro.

Fato é que a frustração demora uns... 30 segundos, se muito. Considero tudo o mais que envolve minha opção pelo campo, e rapidinho sossego o facho.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Eufemismos

Os anglo-saxões têm mesmo problema com certas palavras. Não se fala em doença (disease; illness), mas em condition. Problema? Não, lá as pessoas têm uma issue. O nome do Criador há tempos virou Gosh. O do nazareno, Geez.

Nas bandas de lá, sempre se está a um passo da ofensa. Portanto, cuidado. Ugly? Nem pensar, prefira cosmetically different. Tall virou vertically inconvenienced.

Tampouco os classificados de emprego escapam. Ontem, no jornal, a Qatar Airways procurava comissários de bordo (que, com o tempo, passaram de steward(ess) para flight attendant e agora, como se vê no anúncio, cabin crew).

Requisitos para o cargo: entre outros, mininum arm reach of 212 cms on tip toes.

“Alcance mínimo do braço de 212 cms (pelo visto, metro também virou palavra tabu) da ponta dos pés”. Height (altura), a nova vítima. Talvez seja uma forma de inclusão: dar oportunidades para os baixinhos de braços longos.

A continuarmos nessa toada, e a seguirmos tais exemplos, não demorará para surgir uma nova tradução do clássico de Hemingway: O Idoso e o Mar.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Linguagem publicitária (3)

Sala de espera. Começo a fuçar revistas. Apanho uma dentre elas, voltada ao consumidor (pigarro) moderno. Tenho mania de ler o expediente e as primeiras páginas de qualquer publicação, para saber quem editou, quem traduziu, quem revisou etc. Volta e meia trombo com nomes familiares. Estilo moderno é isso: repare só nos cargos do staff da revista.

Gerente de Evangelização Digital
Criadores de Valor Platinum
Criadores de Valor Gold
Apóstolos do Cliente

terça-feira, 10 de novembro de 2009

O Pai Nosso em tempos modernos

(A velocidade é de cruzeiro. Escrevo da lanhouse. Na roça, temos o modem-charrete, hoje. Aproveito, portanto, e adianto o post de amanhã).

Estive com uma tia minha, dia desses. Acaba de completar 94 anos e passa seus dias e noites rezando. Eu fazia a sesta no mesmo aposento que ela quando... ligo as antenas, prestando atenção às orações. Desfilou um enorme repertório, até chegar ao Pai Nosso. Percebi, então, que ela orava em sua versão de outrora:

“Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos os nossos devedores...”

Isso no lugar de “... como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”.

Quando exatamente terá ocorrido a alteração, terá coincidido com a criação do SPC e das listas de inadimplentes? Terá acompanhado o aumento de influência do FMI pelo mundo afora?

Com tato

Um de meus três leitores (33% do leitorado, não é pouca coisa) acaba de me avisar que meu contato não aparecia na página do blog. O que tornava inútil, portanto, a observação que fiz dias atrás, no post em que fechei a caixa de comentários. Ops.

Taí, reparada a falha. Vide seção "Quem sou eu".

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Uma celebração

Ao reencontro de Claude e Nego Dito.

Tristes trópicos
Itamar Assumpção e Ricardo Guará

O trópico tropica,
Emaranhado no trambique.
A treta frutifica
E tritura todo pique

A trapaça trina e troa,
E extrapola cada dique
O tratado é intrincado
Destratado é truque chique.

O grito atravancado
Tranca até que petrifique.
Tristes gregos e troianos,
Desbragado piquenique.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Os indomáveis e os furos

O filme Os indomáveis, remake do faroeste Galante e sanguinário, me fez lembrar certos textos que me caem no colo, para revisão. Começo a assistir: aparece o primeiro furo de roteiro, então o segundo, e logo mais um. Aqui, a lerdeza dos antagonistas (ok, concedo: tudo em nome do herói) é tamanha, que deixam no chinelo os que caçam Indiana Jones. Sequências que desafiam a verossimilhança e insultam a inteligência do espectador.

A analogia com os textos: há aqueles que escrevem matérias, artigos etc de bate-pronto e já mandam para a publicação. Certamente não releram. Me pergunto se o diretor assistiu à versão final do filme.

E não tem Russell Crowe que dê jeito numa coisa dessas.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Por onde andará...

...Stephen Fry? Fagner? Não. O paradeiro dos dois já deve ter sido descoberto por Zeca Baleiro e pela mídia, respectivamente. O que me pergunto é por onde anda Ruy Goiaba, que durante sete anos nos deliciou com seus posts. Uma perdição, o blog: se estiver à deriva na rede, o internauta surfa ali horas e horas a fio.

O Pura Goiaba era um dos raros endereços da blogosfera no qual a caixa de comentários ia além dos habituais afagos ao ego do blogueiro. E além dos apelos desesperados de visibilidade, do estilo “Dá uma passadinha no meu blog e deixa um comentário?”. Encontrei intervenções saborosas naquele espaço.

Uma das goiabices impagáveis: o conto O homem que sabia Djavanês.

“Não existe a figura de ex-blogueiro”, já disse alguém. Oxalá.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

O colapso dos roceiros (*)

Desde que foi privatizada, a companhia telefônica de nosso estado tem feito todos os esforços para oferecer nada mais do que o melhor aos seus clientes. Prova disso foi o dia em que enviou um técnico à minha ex-casa em Sampa: mal chegou, perguntou se eu não tinha um alicate e uma chave de fenda.

E mostrou, dia desses, que sua meta é mesmo a excelência, a superação. Domingo passado, o telefone amanhece mudo. Logo cedo, ligo pedindo o reparo. Ene, as solicitações, queixas e súplicas. Saldo: sete dias de jejum compulsório. Quando caía a conexão do modem da internet, então... só apelando aos tambores.

Curioso mesmo foi constatar, em retrospectiva, a falta zero que me fez o aparelho. Tirante uma ou outra situação, em que o celular deu conta do recado, é como se nada tivesse ocorrido. É parecido com o hábito de ler jornais: você traça todas as notícias ávida e diariamente até o dia em que viaja quatro, cinco dias para um lugar onde o contato com a civilização é nulo. Volta à rotina e aos jornais para se dar conta de que não perdeu nada.

(*)Referência nada sutil à história narrada em O colapso dos bibelôs, da Mulher.