quarta-feira, 14 de abril de 2010

Ódio em fermentação e o culto da ignorância

Ônibus intermunicipal, entre Itapecerica e Juquitiba, noite de domingo. Vaga um lugar, sento e começo a ler o jornal. Instantes depois, um rapaz se coloca em pé, ao meu lado. De imediato, liga o som de seu celular/I-pod. As canções, cujo estilo não sei definir, têm um único acorde, o ritmo lembra um rap, e em vários trechos uma só palavra da letra é repetida à exaustão.

Lá vamos nós novamente, penso. E prossigo. Ou melhor, tento. O volume do aparelho, a poucos centímetros de minha orelha, era o equivalente a oito, numa escala até quinze. Primeiro impulso: levantar e empurrar o sujeito com toda a minha energia, esperando ver onde sua cabeça aterrissaria, no ônibus que sacolejava. Me viro rapidamente: seu rosto está parcialmente coberto, só o boné se sobressai. Um mano, mais um. Volto ao jornal. Matéria de certa densidade, exigia concentração. Prossegue o putz-putz, que agora invade os tímpanos, indo direto ao cérebro. Interrompo a leitura e passo a fitar a rodovia, procurando conforto no breu quase total. Segundos depois, tento retomar o artigo. É imediato: o I-pod, que se afastara – sem diminuição do volume –, volta a ser posto ao lado de minha orelha. Olho de relance o casal em pé, que observava a cena, sem esconder certo pasmo. A expressão facial dos dois me dizia: fique na sua, se não quiser acabar no IML, ou virar assunto para a próxima edição do Datena. Uma vez mais, interrompo, e logo recomeço a leitura: continua o movimento de recuo e aproximação do I-pod. Exercício extenuante de autocontrole.

Foi quando entendi o tipo particular de ódio que emanava do rapaz.

Rápida digressão: faço esse trajeto há 15 meses, e foram duas, as vezes em que vi alguém lendo. Duas, e numa delas, era a Bíblia. Naquele banco de ônibus, eu era tido como o intelectual metido e arrogante. Qual é a do bacana, ficar dando uma de sabido aqui nas paradas? Nada tinha de gratuito, a leitura que eu fizera na véspera – Ana Maria Machado, na apresentação de um livro de Veríssimo, cita a seguinte frase, que o episódio do ônibus recuperaria como um sonoro eco: “Você acha que a educação custa muito? Espere só para ver o custo da ignorância...”.

Era quase palpável, o ódio do sujeito às letras. Ou, talvez, ao que se chama, abstratamente, de intelectualidade. Estivesse segurando um livro, no lugar do jornal, teria provocado uma reação ainda mais violenta. Hipótese não tão absurda: o rapaz assistiu a (leu o romance? Claro que não, seria um contrassenso) Fahrenheit 451, de Truffaut, e se identificou com os governantes daquela sociedade. Ou terá ele sido vítima do confisco da poupança, início dos anos 90, pelo presidente poliglota, e ainda não digeriu o ódio?

Vivemos o culto da ignorância, terreno fértil para a manipulação. Culto que faz a delícia dos políticos de ocasião, e proliferar um sem-número de igrejas e de picaretas de toda espécie, em toda parte. Culto que permite ao cidadão engolir passivamente o descaso a seus direitos (sem perceber o que está sendo fermentado dentro de si) e que lhe faz dar graças ao Criador quando o morro que desaba destrói a casa do vizinho e não a dele.

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