segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Conversas através da música (*)

Férias escolares. Tempo em que muitos dos pais em Oxford fazem malabarismos, buscando alternativas sobre o que fazer com seus filhos. Momento em que entram em ação as atividades de entretenimento, oferecidas por várias escolas e centros comunitários locais. Foi num desses dias em que meu filhote se juntou às outras crianças, numa dessas atividades, em um parque num bairro considerado periférico.
A petizada não tinha lá muito o que fazer. Destacava-se ali uma tenda, dentro da qual um rapaz se propunha a fazer música com a criançada. Instrumentos de percussão somente, mas dos mais variados. O animador, um negro alto e forte, com um largo sorriso, produz um som que me conquista de imediato, fiquei então com um olho em meu menino que ciscava para cima e para baixo, e outro no que se passava na tenda. Ele propunha ritmos para as crianças, tocando uma frase e pedindo que elas o acompanhassem. Da parte dos guris, muita timidez, pouco envolvimento com a música e desencontros rítmicos, ainda que aqui ou ali um deles revelasse um talento maior para a coisa. Me aproximo, contagiado com aquele som, e apanho um tambor. Começo a bater ritmos, meio hesitante no início, mas logo me solto, tocando no contratempo e improvisando. Me ponho a tentar tirar música de outros instrumentos, um agogô, e uma espécie de chocalho. Meu filho junta-se ao grupo e começa a batucar. Dali a um tempo entra um rapaz de visual hippie anos 70, de longa cabeleira e barba. Apanha outro tambor e começa, mostrando logo ser profissional no assunto. Nesse momento já estou descontraído e proponho um certo diálogo musical com ele, logo aceito. A cena dura uns cinco minutos.
O melhor ainda estava por vir. Há ali três bancos, dispostos em forma de U, e uma garota de uns dez anos senta-se bem à minha frente. Logo proponho o mesmo ‘diálogo’, que ela hesita em aceitar no início, mas logo se entrega. Toco umas dez, quinze ‘frases’, mais fáceis no início, dificultando progressivamente. Ela responde. Logo depois ela toma a iniciativa e propõe as frases para eu repetir. Tudo isso acontecendo sem uma única palavra trocada entre nós. Só a música no ar. Sorrisos gostosos dela revelam o prazer que parece lhe dar o som que ela mesma produz, a menina tão jovem, quase adolescente. Termina o horário, o negro começa a recolher os instrumentos, sinalizando que queria ir para casa. Eu ali querendo prolongar mais e mais o prazer e aquela ‘conversa’ deliciosa que tinha com a menina. Ela não precisaria abrir a boca, a música se encarregaria de nossa comunhão. Recolhidos todos os instrumentos, ele me diz ‘Obrigado por sua ajuda’, o outro ‘profissional’ e a menina com quem ‘dialoguei’ desaparecem rapidamente, sem dizer palavra.
Saí dali orgulhoso de ter conseguido usar a música para expressar sentimentos, tão logo percebi que a conversa tradicional via linguagem ali não teria espaço. Trouxe para casa o bonito sorriso da menina e a sensação de que ela voltou para casa meio intrigada ou curiosa com aquela ‘conversa’ meio diferente que acabara de ter com um ‘estranho’.
A música como forma de expressão. Geraldine Chaplin, anos atrás, disse que enquanto assistia a um show de Chico César, no Nordeste, emocionou-se algumas vezes no meio das canções. No mesmo depoimento, confessou não saber lhufas de português.
Da mesma forma que minha voz e violão não deixavam indiferentes vários passantes nas ruas de Gênova e vários dos hóspedes de um hotel em Eilat (lembro em particular de um que tamborilava com os dedos, enquanto eu tocava e cantava uma bossa-nova), nos idos de 1988, a música, tal qual no show de Chico, opera milagres também aqui na ilha, aproximando as pessoas, tornando-as mais sensíveis, mais permeáveis.


(*) Texto escrito em 2003, quando eu morava na ilha. Ao reler, o primeiro impulso foi começar a editar, apagar, reescrever. Deixo como está: fazer isso equivaleria a aplicar o Photoshop numa foto antiga.

Um comentário:

Anônimo disse...

adorei essa história pai!!!!!!
muito emocionante!!