quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Viagens

Viagem Literária, Biblioteca de Ilhabela. Cinquenta mil volumes, mui bem organizados. Às moscas. Mais tarde, à saída, nos pediriam para assinar o livro de visitantes, mas num tom que beirava a súplica.

No primeiro andar, auditório lotado: concentrados (a acepção da palavra, você escolhe), adolescentes de três escolas estaduais. Enquanto a autora apresenta sua obra, observo as reações dos guris. Dez por cento deles, se muito, sorvem cada frase dela, interrompendo para fazer perguntas. Os demais têm o olhar perdido no horizonte, a alma a quilômetros de distância do corpo. Viajando. No final, o Secretário da Cultura da cidade faz os rapapés de praxe, e dá os “parabéns” ao público, com uma frase sugestiva: “Vocês estão aqui há mais de uma hora, e se comportaram muito bem”.

De fato, comportadinhos. Da quantidade de energia usada para domar os demônios internos, só Deus – ou Belzebu – sabe.

Perguntas balançando no trapézio da mente: os alunos ali estavam por vontade própria? De volta à sala de aula, terão de preparar algum relatório ou responder a um roteiro de questões (prática característica em muitas escolas, que viajam com seus alunos para "estudos do meio"; mas a viagem, em si, não basta: é necessária a finalidade didática, a justificativa perante os pais e o diretor da escola de que não foram simplesmente ‘passear’)? Têm alguma liberdade de escolha dos livros que leem ao longo do ano? Podem, por exemplo, sugerir a leitura de seus próprios “clássicos”? Quando perguntados, alguns responderam, corajosamente, que não gostam de ler; que alternativa a escola lhes dá?

E assim continua a ladainha: o que fazer para criar o hábito da leitura?

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Fruta no pé

Primavera a todo o vapor no recanto. Já começamos a colher no pé: goiaba, abricô, cereja e amora. Bananas, quase lá. Café, idem. Sem contar o estirão das catalônias, cenouras e alfaces. Eita, a estação promete.

Índigo Press: a Mulher participa da Viagem Literária, um programa da Secretaria da Cultura do Estado. Nesse mês, bate-papos apenas com autores de infanto-juvenil, entre eles Ignácio de Loyola Brandão e João Carlos Marinho. O bacana é que, das 55 cidades escolhidas, grande parte é lugar pequeno. Os três próximos destinos dela: Tanabi, Adolfo e Gavião Peixoto. O primeiro encontro foi em Ilhabela, que o escriba presenciou. O lado B do evento, você encontra aqui, na 4ª feira.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Palíndromos (final)

Só sossego no dia em que conseguir compor um deste quilate (ignoro o autor, aliás):

A MAN, A PLAN, A CANAL: PANAMA.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Língua, poder e autoimagem

Estado de S.Paulo – A obra de Freud é marcada por sua didática, sua clareza. E esse não me parece ser o caso dos pensadores da psicanálise contemporânea. De onde vem esse problema de comunicação?

Elizabeth Roudinesco – Esse problema é enorme. Os psicanalistas escrevem em clichês. (...) Freud era um autor claro, o que influenciou todo o movimento psicanalítico. Hoje, quando leio psicanalistas freudianos norte-americanos ou ingleses, fico impressionada com a quantidade de clichês que eles usam. Quando os intelectuais se fecham em torno de si mesmos, eles falam a linguagem de uma tribo. No interior, a tribo se compreende. (...) Às vezes, os antropólogos e sociólogos que queriam se divertir perguntavam se eu, como psicanalista, não me sentia como o antropólogo que chega à Melanésia e deve decifrar a linguagem da tribo.


Volto ao tema da falta de clareza nos textos. A afirmação de Roudinesco vem a calhar. São inúmeras as situações em que o texto acadêmico é indecifrável. Aparentemente escrito para ser lido pelos membros da tribo. Pode se tratar de uma simples confusão mental, mas essa obscuridade parece revelar algo mais grave: o desejo de poder.

O diabo é que esta obscuridade não é privilégio da academia. Ela afeta grande parte dos contratos (redigidos em juridiquês), o discurso dos economistas, as incontáveis consultas em que os termos usados pelo médico deixam o paciente boiando, as bulas de remédio. Uma linguagem que, ao delimitar terreno – os termos empregados não serão compreendidos por todos – colabora com a exclusão. A marginalização, que já ocorre no plano econômico, mostra-se presente no uso cotidiano da língua – um tema brilhantemente analisado por Marcos Bagno, no livro Dramática da língua portuguesa – Tradição gramatical, mídia e exclusão social (Ed. Loyola).

Ao deparar com textos que carecem de clareza, me ronda a dúvida: de onde vem essa busca (inconsciente?) de poder, essa necessidade constante de apresentar uma falsa imagem?

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Conversas através da música (*)

Férias escolares. Tempo em que muitos dos pais em Oxford fazem malabarismos, buscando alternativas sobre o que fazer com seus filhos. Momento em que entram em ação as atividades de entretenimento, oferecidas por várias escolas e centros comunitários locais. Foi num desses dias em que meu filhote se juntou às outras crianças, numa dessas atividades, em um parque num bairro considerado periférico.
A petizada não tinha lá muito o que fazer. Destacava-se ali uma tenda, dentro da qual um rapaz se propunha a fazer música com a criançada. Instrumentos de percussão somente, mas dos mais variados. O animador, um negro alto e forte, com um largo sorriso, produz um som que me conquista de imediato, fiquei então com um olho em meu menino que ciscava para cima e para baixo, e outro no que se passava na tenda. Ele propunha ritmos para as crianças, tocando uma frase e pedindo que elas o acompanhassem. Da parte dos guris, muita timidez, pouco envolvimento com a música e desencontros rítmicos, ainda que aqui ou ali um deles revelasse um talento maior para a coisa. Me aproximo, contagiado com aquele som, e apanho um tambor. Começo a bater ritmos, meio hesitante no início, mas logo me solto, tocando no contratempo e improvisando. Me ponho a tentar tirar música de outros instrumentos, um agogô, e uma espécie de chocalho. Meu filho junta-se ao grupo e começa a batucar. Dali a um tempo entra um rapaz de visual hippie anos 70, de longa cabeleira e barba. Apanha outro tambor e começa, mostrando logo ser profissional no assunto. Nesse momento já estou descontraído e proponho um certo diálogo musical com ele, logo aceito. A cena dura uns cinco minutos.
O melhor ainda estava por vir. Há ali três bancos, dispostos em forma de U, e uma garota de uns dez anos senta-se bem à minha frente. Logo proponho o mesmo ‘diálogo’, que ela hesita em aceitar no início, mas logo se entrega. Toco umas dez, quinze ‘frases’, mais fáceis no início, dificultando progressivamente. Ela responde. Logo depois ela toma a iniciativa e propõe as frases para eu repetir. Tudo isso acontecendo sem uma única palavra trocada entre nós. Só a música no ar. Sorrisos gostosos dela revelam o prazer que parece lhe dar o som que ela mesma produz, a menina tão jovem, quase adolescente. Termina o horário, o negro começa a recolher os instrumentos, sinalizando que queria ir para casa. Eu ali querendo prolongar mais e mais o prazer e aquela ‘conversa’ deliciosa que tinha com a menina. Ela não precisaria abrir a boca, a música se encarregaria de nossa comunhão. Recolhidos todos os instrumentos, ele me diz ‘Obrigado por sua ajuda’, o outro ‘profissional’ e a menina com quem ‘dialoguei’ desaparecem rapidamente, sem dizer palavra.
Saí dali orgulhoso de ter conseguido usar a música para expressar sentimentos, tão logo percebi que a conversa tradicional via linguagem ali não teria espaço. Trouxe para casa o bonito sorriso da menina e a sensação de que ela voltou para casa meio intrigada ou curiosa com aquela ‘conversa’ meio diferente que acabara de ter com um ‘estranho’.
A música como forma de expressão. Geraldine Chaplin, anos atrás, disse que enquanto assistia a um show de Chico César, no Nordeste, emocionou-se algumas vezes no meio das canções. No mesmo depoimento, confessou não saber lhufas de português.
Da mesma forma que minha voz e violão não deixavam indiferentes vários passantes nas ruas de Gênova e vários dos hóspedes de um hotel em Eilat (lembro em particular de um que tamborilava com os dedos, enquanto eu tocava e cantava uma bossa-nova), nos idos de 1988, a música, tal qual no show de Chico, opera milagres também aqui na ilha, aproximando as pessoas, tornando-as mais sensíveis, mais permeáveis.


(*) Texto escrito em 2003, quando eu morava na ilha. Ao reler, o primeiro impulso foi começar a editar, apagar, reescrever. Deixo como está: fazer isso equivaleria a aplicar o Photoshop numa foto antiga.

Sincs

Cenas do fim de semana:

1. Sábado à tarde, terminal de ônibus da Estação Vila Madalena do metrô. Apresentação de um grupo de capoeira, que saboreio por longos minutos.
2. Dia seguinte. Leio artigo no Estadão, sobre a xenofobia na Europa.
3. Domingo, horas mais tarde. Assisto ao filme O visitante, que comprara dia antes, sem sequer saber direito do que tratava.

O diálogo entre as três situações é impressionante. Sincronicidades, cada vez mais. Levo um tempão para cair no sono, pensando nos inúmeros pontos de contato entre as três cenas, e mais: entre elas três e as histórias que vivi em minhas viagens. Percebo que a crônica que escrevi há alguns anos ainda está muito presente em mim. Veja o próximo post.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Só mais uma coisa...

Amanhã à tarde tem contação de histórias no SESC-Ipiranga, baseado em Saga Animal, primeiro livro da Mulher. Tou curioso para ver. Mais detalhes, no blog dela. Ou no Portal do SESC na internet.

Bom fim de semana.

A vida no campo e o nada

“Escrever sobre o quê, se aqui não acontece nada?”

Foi a primeira coisa que me veio à mente, quando caçava assunto para o blog, dia desses. Nada como o processo de decantamento, para filtrar certas bobagens. É só apurar os ouvidos e o olhar, que surgem os sinais. Registro alguns deles.

O desabrochar das orquídeas por todo lado. A amoreira dando seus primeiros frutos. Cavalos e vacas que voltam a tomar o café-da-manhã no terreno ao lado. Microfolhas aparecendo na macieira recém-plantada. Os berros da vizinha com seu cão, que crescem na medida inversamente proporcional à disposição dele de obedecer. O sumiço dos suriás, que brincavam junto dos beija-flores. O pica-pau de barriga amarela. A lenta mudança na dieta de Valentina, que agora alterna whiskas com morcegos, besouros e (hélas!) beija-flores. O despertar diário com a passarada e os carneiros do vizinho, que me libertaram da tirania do despertador.

E isso tudo no plano externo (que, no fim das contas, é secundário). Como assim, não acontece nada?

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Essa é pra tocar no rádio (*)

Nesta seção, darei alguns pitacos sobre os músicos e cedês a que recorro quando bate a necessidade de realimentar a alma. Começo com Márcio Faraco.

Ele é gaúcho, mas os europeus o conhecem melhor que nós – teve pelo menos 60 mil cópias vendidas, o primeiro de seus cinco álbuns. Destes, somente o segundo, Interior, foi lançado aqui, pela Biscoito Fino. Há mais de dez anos, mudou-se de vez para a França, onde tem gravado seus cedês, pela Universal Music.

Na faixa Ciranda, que abre seu primeiro álbum, homônimo, Faraco já dava uma amostra do que viria. Um trecho (letra dele; música em parceria com Pedrin Gomes):

Andando só na corda bamba
Não temo o futuro da nação
A gente que sempre dançou samba
Enfrenta qualquer divisão


Explorada ao máximo, a polissemia da palavra divisão: a divisão de classes, a divisão entre raças e a divisão rítmica (a síncope, característica do samba, é ressaltada no modo como os dois últimos versos são pronunciados, na segunda vez). Uma discreta celebração de nosso caráter, mas sem ufanismo.

Têm esse nível de sofisticação, as letras do restante do álbum e de seus demais cedês. E semelhante refinamento melódico e harmônico. Os ritmos e os temas são os mais variados. Por exemplo, um fato aparentemente banal – a saraivada de garrafas que se abateu sobre Carlinhos Brown no festival Rock in Rio –, é transformado numa obra-prima de canção: Chuva de vidro, (álbum Com tradição). Retrata com maestria e leveza a opacidade de Brasília (parceria com Fernando Torres Filho), em Cidade (Com Tradição). Poderia me estender, mas o melhor mesmo é ouvi-lo.

Nem gravadoras nem a mídia se interessam por Faraco – ou por Hermeto, Gismonti, ou vários outros. Atualíssima, a canção de Aldir Blanc e Maurício Tapajós, famosa na voz de Elis: “O Brazil não conhece o Brasil (...) O Brazil não merece o Brasil”. Há amostras de seu trabalho na rede, gugla lá. Uma apresentação bacana você encontra aqui. Ou visite seu site.

(*) Faixa do álbum Refazenda, de G.Gil, de 1975. Jamais tocou no rádio. Quem ouviu, sabe o motivo.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Escrever para crianças

“Há só uma regra para fazer filmes para crianças: nunca fazer um filme para crianças. Um filme feito com a preocupação de que tudo seja compreendido por crianças não é apenas um filme ruim, mas é uma atitude equivocada. O trabalho de uma criança deve ser aprender, aprender e aprender mais. Para ela, quase tudo o que aparece na sua vida é novidade, e não compreender as coisas faz parte de seu cotidiano. A criança não se afasta completamente de uma história por não a ter entendido. Entre as novidades que surgem, haverá detalhes que ela compreenderá, porque sua mente é muito esperta e ativa. Há coisas que ela adivinha. E há coisas, claro, que ela não entende mesmo, mas que guarda estocadas no cérebro para usar no futuro”.

A declaração acima é do cineasta Michel Ocelot, citada no artigo de Braulio Tavares, “Escrever para crianças”, na revista Língua Portuguesa desse mês. Basta trocar “fazer filmes” por “escrever”, “filme” por “livro”, e a declaração se aplicará muitíssimo bem ao que está implícito na obra produzida pela Mulher – uma literatura que não subestima a inteligência do leitor. Não a conhece ainda? Sugiro começar por A maldição da moleira. E continuar com Um pinguim tupiniquim - que será lançado amanhã, aliás. Detalhes, em seu blog.

Em tempo: a partir de hoje, este blog será atualizado às 2as, 4as e 6as feiras. Nos demais dias, só quando me bater os cinco minutos.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Notas de um revisor (2)

Um aspecto bastante interessante desta profissão é observar o modo como o autor reage às correções apontadas. Em alguns casos, o melindre vem à tona. Como se o amor-próprio do sujeito tivesse levado um golpe. Durante meses, fiz frilas numa revista de grande circulação. Minhas perguntas e sugestões de correção eram tidas como uma quase-afronta por um assistente do editor. Aquelas eram respondidas como se ele me estivesse fazendo um enorme favor; estas acabavam sendo quase sempre acatadas (não raramente com um muxoxo): a equipe era formada por três revisores, e nossa sugestão de correção só chegava a ele depois de um bate-bola entre os três, em busca de um consenso.

Trabalhar como revisor produz um, digamos, efeito colateral: não consigo ler mais uma linha sequer, esteja ela em jornal, em livro, encarte de CD ou embalagem de produto sem que, quase inconscientemente, o pente-fino seja passado pelo texto. E o que ocorre? Claro, os erros pululam. Parecem brilhar com luz néon.

Permanecem, também, alguns mistérios: por que é que problemas de revisão continuam a surgir em toda parte (ouço tão raramente queixas a esse respeito, me pergunto se alguém mais se incomoda com isso)? A figura do revisor já é supérflua em redações de jornais (a julgar pela seção “Comunicar erros”, na qual o leitor do jornal na versão online pode “interagir” com a redação, lhes dando uma mãozinha, sim. Isso ocorre no principal jornal do país; nos demais, melhor nem imaginar)? No caso de uma tradução, espera-se que o próprio tradutor apare todas as arestas? Julgam, quiçá, que um estagiário de 3º ano de Letras consegue dar conta do recado – nesse caso, remuneração adequada para quê?

Pensei nestas e noutras questões ao deparar, tempos atrás, com Futebol ao sol e à sombra, belíssimo livro de Eduardo Galeano, edição de bolso. Nele, uma média de dois a três erros por página. Espio na página 3, e noto que quatro pessoas assinaram a revisão. Estarrecido, escrevi um email ao editor. Sua resposta, acompanhada de um pedido de desculpas: oferecemos o reembolso da quantia paga. Não queria o dinheiro de volta, queria apenas ser respeitado como leitor.

Talvez fosse – e ainda seja – pedir demais.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Notas de um revisor

Ao fazer o curso de Letras, esta era provavelmente a última possibilidade que me passava pela cabeça: tornar-me revisor de textos. Ironia, pois, dentre os trabalhos que faço, é um dos que mais curto. Parece haver uma espécie de fetiche, nisso: o prazer de escarafunchar o texto alheio, para poder arredondá-lo. Além de cuidar do essencial – ortografia, pontuação, concordância e regência –, dar pitacos sobre o estilo, o registro (expressões coloquiais usadas em contexto mais formal, por exemplo), a presença de clichês (dia desses, uma matéria de revista falava da violência em SP. No parágrafo seguinte, a autora mudou o foco, e começou a falar do Rio de Janeiro. Adivinhe com que expressão ela se referiu à cidade. Sim, essa mesma que você pensou), as redundâncias (tem sempre alguém que “encara um problema de frente”, ou uma cena em que “chove lá fora”).

Dito isso, o que vier, eu traço, então?

Em termos. Há uma distinção nítida entre: 1) os textos “ideais” e 2) os sapos do ofício. Os primeiros fluem, são redigidos com certa clareza, necessitando apenas de pequenas adequações aqui e acolá. Seus autores sabem onde querem chegar com sua argumentação. No segundo tipo, exige-se do revisor quase um trabalho de telepatia: “O que é que o cidadão quis dizer com esta frase?”. Aqui, são comuns as frases truncadas, a sintaxe que foi claramente emprestada de outra língua, expressões idiomáticas com tradução literal, ideias que não mostram a que vieram dentro do texto. Particularmente penoso, porém, é o fato de surgir com grande frequência, neste tipo de textos, um estilo empolado, com palavras pretensamente eruditas, mas que pouquíssimo acrescentam ao sentido geral. É o chamado texto-gelo-seco (lembro de um show de MPB a que assisti, de qualidade musical mediana, surpresa zero do ponto de vista musical; nele, a fumaceira tomava conta do espaço). Tampouco é incomum o texto-enceradeira: anódino na sua essência, mas ainda assim o autor, com certo malabarismo verbal, consegue criar a expectativa de que aquilo vai desembocar em algum lugar; nele, a argumentação dá voltas e mais voltas, e se você estiver lendo com atenção, ficará agoniado, a perguntar: “Ok, entendi. Mas e daí? E depois?”.

É óbvio que nem sempre dá para escolher o tipo de texto, numa oferta de trabalho de revisão. Se surge um do tipo 2, a solução (a menos que se trate de emprego fixo em editora) que serve de paliativo é cobrar pelo trabalho de reescrita, levar em conta o tempo gasto nesse processo. Claro que tal postura é recebida com indignação, pois o trabalho intelectual em nosso país, em geral, não é valorizado. Percebo que, cada vez mais, têm caído em minhas mãos textos do tipo 1. Mas leva tempo para isso acontecer.

(continua)

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Ressaca

Volta e meia pipoca o relato de um escritor que compôs várias páginas, às vezes livros inteiros, sob o efeito de alguma droga – álcool, cannabis. Alguns pegam pesado: cocaína, Britney Spears. Grande parte deles diz que, ao reler, muito pouco do que foi escrito é realmente aproveitável.

Micro plenamente recuperado, releio o que traduzi ontem. Benzadeus, que porre. Vá lá: do total, devo aproveitar uns trinta, quarenta por cento. Grosso modo, a manhã de trabalho serviu para a observação da fauna humana – o que também não é ruim.

Só mesmo muito de quando em quando nasce um Villa-Lobos.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Villa-Lobos e a Lan-House

Li, certa vez, que Villa-Lobos, quando perguntado sobre como conseguia trabalhar, compondo ao piano, em meio a um fuzuê interminável de crianças correndo ao seu redor, e pessoas falando, teria respondido: "O barulho externo não tem absolutamente nada a ver com o que estou fazendo, portanto não há problema nenhum".

Ao cabo de três horas de trabalho de tradução (e com certo êxito) numa lan-house, com o típico som bate-estaca ao fundo, adolescentes urrando de uma cabine à outra, perguntando sobre o orkut, o msn e o diabo, é inevitável a lembrança do maestro.

Terei entrado numa bolha, sem perceber?

Quantos compassos Villa seria capaz de produzir, cá onde estou?

Nossos comerciais, por favor

Assim pedia Flávio Cavalcante, na década de 70, e assim terei que pedir agora. Deu um apagão geral, por aqui, e meu micro vai hoje para a UTI, onde ficará respirando com/entre aparelhos. Momentos de vigília no Recanto Pau D'Alho. Volto em breve.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Palíndromos (3)

Neste, o protagonista é meu filhote. Uma homenagem às avessas, por assim dizer:

LIVIO FOI VIL

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Ops!

Em idioma estrangeiro, frequentemente há linha cruzada. Ou então gafes.

As cenas a seguir são de tempos idos, ambientadas em outras latitudes. Nos dedos de um ficcionista habilidoso, viravam conto. Aqui, quando muito, (ana)crônicas.

1. Oxford. Espero meu filho à saída da escola. Aproxima-se uma mãe, e puxa o papo de sempre:

– Cold, isn’t it?
– Ô! *
– Warm**? You find it warm?

* Como pode, uma interjeição tão expressiva não significar xongas para eles?
**No sotaque inglês, o “r” praticamente não é mais pronunciado. Nos EUA, claro que nada teria acontecido.

2. Paris. Converso alguns minutos, ao telefone, com um professor universitário de lá. No final, recebo um elogio dele ao meu francês (fizera bons progressos, em poucos meses na cidade). Eu já o conhecia do Brasil; tínhamos, portanto, um pouquito de intimidade. Mas, ao despedir, soltei:

– Au revoir, alors. Je t’embrasse.

Silêncio mortal do outro lado da linha.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

terça-feira, 1 de setembro de 2009

De pragas urbanas e leis

Lembra-se do tempo em que você ia a um restaurante e não havia tevê ligada ao fundo? Quando era possível ler dentro de um ônibus em movimento sem que a passageira ao seu lado começasse uma D.R. com o namorado, via celular? Hoje, além de tais cenas terem sido incorporadas à paisagem, o celular funciona como aparelho de som e é ligado no volume 15 dentro do metrô ou do ônibus. Olho ao redor, buscando cumplicidade para meu pasmo, e nada. Hipótese: está em curso um processo generalizado de embotamento dos sentidos. Ou então é o blogueiro que está ficando senil.

Ora, se dirijo pelas ruas com o som ligado em 120 decibéis, se meu I-Pod é perfeitamente audível a dez bancos de distância, no ônibus, estou tratando o espaço público como privado. A rua e o ônibus como extensão de meu próprio quarto. E cadê o moral que me dá o direito de ficar indignado com Sarney, com o Senado etc? Não estou fazendo mixórdia parecida?

Está em vigor a lei anti-fumo em locais públicos em SP. Inspirada nela, não caberia discutir a viabilidade de uma lei anti-música ambiente?