segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Uma tradução primorosa: Asterix

Só descobri Asterix relativamente tarde, por volta dos 22 anos. Mochileiro, eu perambulava pelo mundo, e o exemplar era em inglês. Foi o impulso definitivo para que eu investisse em meu primeiro dicionário monolíngue. Isso porque eu começava a perceber os frequentes jogos de palavras (os autores de língua inglesa adoram brincar com as possibilidades da homofonia, peace/piece, boar/bore etc), e me dizia: pera lá, essa piada não deve funcionar na língua original! Será que a tradução melhorou o original? Começava a ganhar formas, ali, o embrião de um tradutor.

Pois bem, relendo Asterix and Cleopatra (tradução para o inglês de Anthea Bell e Derek Hockridge, de 1969), as pupilas voltam a brilhar com duas passagens, que transcrevo a seguir, invertendo apenas a ordem em que elas aparecem na história.

1. Em visita a Luxor, no Egito, Asterix e Obelix estão diante de um obelisco. Asterix: “Não, não, e pela terceira vez, não, Obelix. Esta coisa no meio do vilarejo? Ficaria ridículo”. Obelix: “We shall never be in concord over this”. Frase que jamais seria dita em linguagem coloquial. Nela, ele diria algo como “We’ll never agree on this point”. Consulto o original, em francês, e ali está: “Nos opinions ne concordent jamais!”, também em registro formal (na linguagem cotidiana, “on est jamais d’accord”). Genial, a sacada de Goscinny, imediatamente percebida pelos tradutores. Isso porque em Paris, no centro da Place de la Concorde, há um obelisco (pilhado pela França numa das guerras napoleônicas).

2. O arquiteto de Cleópatra, Edifis (Numérobis, na versão original) é convocado por ela, que fizera uma aposta com César. A rainha lhe promete construir, em três meses, um palácio magnífico em Alexandria, para convencer o imperador quanto à grandeza dos egípcios. Edifis, desesperado com a limitação do prazo, viaja para a Gália, ao encontro de seu amigo druida. Sua poção mágica e nossos heróis são os únicos que podem lhe tirar da enrascada. Cena: Edifis chega ao vilarejo e diz: “My dear old Getafix, I hope I find you well?”. No original: “Je suis mon cher ami, très heureux de te voir”. Comenta o druida, com os aldeões: “É um alexandrino...”. Seja no original, seja na tradução, você pode contar: há doze sílabas na frase do arquiteto. Um verso alexandrino, portanto.

E há quem alimente a crença de que os tradutores serão, um dia, substituídos pela máquina...

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