quarta-feira, 24 de março de 2010

Carmen

O relato de Ruy Castro conduz o leitor por uma longa viagem entre 1909 e 1955. Inicia na Lapa do Rio, passa por Nova York, Hollywood, boa parte dos EUA e vários países da Europa. A trajetória e o estrondoso sucesso de Carmen Miranda são descritos em linguagem fluente e elegante, num trabalho que impressiona pela riqueza de detalhes.

Em Carmen – uma biografia (Companhia das Letras, 2005) chamam a atenção, entre outros aspectos:

1) Seu sucesso quase que imediato nos EUA e a facilidade com que ela abriu caminhos neste país, em contraste com o desprezo absoluto da crítica e imprensa brasileiras diante de tais conquistas;
2) Sua independência e assertividade, prescindindo de agentes ou empresários durante boa parte da carreira, decidindo tudo sozinha;
3) O completo desapego de Carmen em relação ao dinheiro (ganhou os tubos) e aos bens materiais, de par com sua extrema generosidade, presenteando e ajudando tanta gente ao redor – e não apenas de sua família;
4) O modo como foi estereotipada por Hollywood (jamais teve um papel sério no cinema), como a latina caricata e de pouca inteligência, a cujas falas eram atribuídos erros gramaticais primários – ainda que ela, após alguns anos no país, já falasse muito bem o inglês. Para os americanos, Carmen sempre foi uma comediante;
5) Sua submissão à extrema limitação de repertório em shows nos EUA (Aloysio de Oliveira, do Bando da Lua, grupo que a acompanhava, estima que “Mamãe eu quero” foi cantada por Carmen cerca de 4.000 vezes, em cerca de dez anos);
6) O contraste entre a bem-sucedida carreira e sua obsessão por casar e ser mãe (e o fiasco que resultou destas duas experiências);
7) Sua firme determinação em alimentar o processo de autodestruição, que teve início logo após sua chegada aos EUA; para poder enfrentar a maratona de compromissos (os inúmeros shows, somados à carreira em Hollywood), passou a depender, cada vez mais, de anfetaminas e barbitúricos.

Este último aspecto é o foco de grande parte da biografia. Permanece a dúvida sobre o porquê de Carmen, que irradiava alegria, ter optado pelo autoboicote: o que leva, por exemplo, uma artista de 41 anos, que já ganhara rios de dinheiro, a topar participar de uma maratona de 43 shows em 43 cidades diferentes, em 43 dias? A grana (100 mil dólares, neste caso)? Não faz sentido: ela faturou muito mais do que isso, e os convites simplesmente não paravam.

Uma pequena estranheza: embora o “impulso de morte” de Carmen tenha sido colocado em evidência, são tantas as virtudes da biografada, que é inevitável, ao final da leitura, a sensação de que aqui foi narrada a vida de uma fortíssima candidata à canonização.

Isso talvez se deva a uma extrema empatia e identificação: é interessante perceber como o estilo de Ruy Castro vai, aos poucos e sutilmente, se mesclando ao da personalidade sobre a qual escreve (isso já acontecera na biografia de Nelson Rodrigues e, em menor medida, na de Garrincha): disso resulta, neste livro, a linguagem cheia de bossa, bem-humorada e sem qualquer afetação, tão característica de Carmen.

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